Transimagens

Angela Lima
Curadoria
Fernando Cocchiarale

Fotos
Daniel Katz
05/05 - 16/07 2018



Esta é a primeira exposição individual de Angela Lima. Até agora, seus trabalhos só haviam sido vistos em três mostras coletivas, todas realizadas em 2017.

Currículos breves, com participações recentes, costumam apontar para artistas em começo de carreira. Mas os trabalhos aqui expostos na Galeria Soma parecem estar na contramão dessa expectativa, já que nos surpreendem pela sensível trama poética produzida pela artista por meio do entrelaçamento de questões semânticas (relativas ao sentido, às mensagens ou aos temas de seus trabalhos) com decisões sintáticas (maneira pela qual intenções semânticas da artista são material e formalmente organizadas, em mídias, linguagens, etc.), conferindo singularidade ao conjunto aqui exposto e, simultaneamente, inscrevendo-o no âmbito mais abrangente da produção contemporânea. Tais características de amadurecimento processual não são facilmente observáveis na produção de jovens artistas.

O lastro poético-processual que atravessa e empresta sentido ao conjunto de trabalhos de Angela, apesar dela ser para o mercado de arte uma iniciante, pode ser creditado à prioridade absoluta dada pela artista à sua própria formação, em detrimento das articulações habituais feitas para inscrever prematuramente obras de artistas jovens no sistema de arte.

Em Transimagens, Angela resume seu processo de trabalho dos últimos 15 anos. Ao longo de desse período ela participou de cursos livres, com foco no processo criativo; viajou para visitar, sob orientação pedagógica, algumas das mostras internacionais mais importantes de arte contemporânea do mundo; graduou-se em pintura (de 2005 a 2010) e especializou-se em História da Arte Moderna e Contemporânea (de 2011 a 2012) pela Universidade Estadual do Paraná.

De acordo com declaração da própria artista, “sua obra reflete processos de construção da subjetividade. Captura – com influência da fotografia e do cinema – os instantes e os sedimentos da memória por meio dos quais o sujeito se (des)constitui. Usa elementos da sua história profissional, como o tecido e a costura”.

Subjetividade, memória, costura, fotografia, cinema, desenho e pintura serão pontos de amarração entre tais narrativas e sua organização sintática no espaço expositivo? Como a edição dos trabalhos no espaço – por meio da montagem – assimila ou descarta conteúdos discursivos como os mencionados pela artista nesse texto?

A reflexão sobre “processos de subjetividade” ou a tematização de “sedimentos da memória por meio dos quais o sujeito se (des)constitui”, certamente não pode ser feita por meio da palavra, já que reduziria os trabalhos da artista a meras ilustrações de narrativas estritamente verbais.

Transimagensnão é, portanto, um conceito, posto que sua transitividade não fixa qualquer identidade no campo da arte. O título desta mostra de Angela Lima aponta para uma rede de articulações poéticas concretas que, observadas de perto, promovem atravessamentos múltiplos que “(des)constituem” práticas que estariam na base da qualidade e da coerência de um processo criativo específico.

Dentre tais atravessamentos destacamos o principal, já que dele emanam os principais obstáculos à compreensão do sistema de arte atual como o da redução, por muitos, da experiência artística ao conteúdo temático (semântico) de que trata a obra.

Trata-se de ideia essencial ao modernismo (estruturado e construído do ponto de vista da indústria), mas de difícil aplicação no mundo contemporâneo (fluido, desmaterializado, randômico e cambiante, como o capital financeiro). Tal ideia pode ser resumida da seguinte maneira: a arte pertencia ao campo da linguagem, já que sua estruturação interna específica (a composição formalizada) deixou de ser regulada pela representação mundana, tornando-se abstrata.

O final dos anos de 1950 viu florescer uma nova e outra figuração referenciada tanto por imagens cotidianas, quanto pela proposta de um fazer com base na apropriação de objetos utilitários.

Entretanto, a essas referências icônicas e materiais somou-se uma terceira, midiática. Em poucas décadas a fotografia, o cinema e o vídeo se tornaram meios permanentes do campo expandido da produção artística contemporânea. Tal sucesso foi possivelmente demandado pelo teor temático e semântico da arte atual, oposto ao formalismo (ou à sintaxe) dominante no modernismo.

A associação empírica da noção de ofício e da noção de linguagemprecisava preservar campos puros em que cada sistema de signos pudesse assegurar sua sobrevivência sem ser confundido com outros sistemas. Consequentemente, opunha-se aos híbridos e à contaminação entre linguagensque começaram a se adequar a um mundo em rede, em que a pureza tornou-se difícil de ser preservada.

            De um ponto de vista midiático purista (restrito aos dispositivos eletrônicos), a produção de Angela pode parecer estritamente pictórica. Entretanto, seu trabalho opera continuamente contra a preservação das antigas fronteiras estabelecidas entre ofícios, linguagens e mídias por meio de procedimentos de edição e montagem inventados pela fotografia, pelo cinema, vídeo e por computadores, mas que hoje informam pensamentos, projetos e métodos de produção e organização em áreas já muito distantes daquelas da tecnologia stricto sensu.

Os trabalhos de Angela Lima resultam de procedimentos híbridos que convergem editados nas obras e na montagem para a formação de alguns conjuntos determinados por recorrências de vários tipos – poéticas, técnicas. Destacamos alguns exemplos mostrados em Transimagens, ressalvada a decisão da artista em não dar títulos aos trabalhos.

Os quadros de Angela podem ser sobre telas convencionais ou sobre alumínio. Mostram-nos figuras de crianças em situações aleatórias, de tensão, insegurança e alegria, que talvez integrem os sedimentos de memória da artista por meio dos quais o sujeito se “(des)constitui” – como mencionado por ela. Memórias pessoais e memórias coletivas são como antessalas semânticas destas obras. Porém, sem sua materialização sintática, o circuito poético não se consuma.

As pinturas sobre tela possuem sempre um fundo de listras vermelhas ou pretas. Sobre estas estão imagens de crianças extraídas de fotografias que evocam as memórias transmutadas pelo trabalho da artista. Estas imagens, no entanto, não param de ser atravessadas por outras atitudes e decisões “(des)constituintes” que se manifestam de modo sutil em outras camadas do processo criativo de Angela.

Nestas pinturas ocorrem, por exemplo, inversões e atravessamentos de repertórios que moveram a história (do ofício) da pintura: se os fundos listrados foram pintados à mão (e historicamente sempre o foram), as figuras estão desenhadas inversamente num estado pré-pictórico inaceitável.

Esse padrão é replicado sintaticamente no método do trabalho de Angela Lima. Tanto nos feltros bordados, em que o pesponto é um marcador de campo, quanto nas telas de linho com figuras masculinas desenhadas pela linha de costura, a artista desconstitui repertórios puristas do âmbito pictórico.

Camadas significativas de procedimentos heterogêneos, extraídos de contextos diversos, revelam a dinâmica do pensamento transmidiático da artista. Tais atravessamentos, longe de serem contrários às possibilidades da pintura, repensam-na e a tornam possível no campo impuro e hibridizado da arte contemporânea.