Parca Hegemonia  

Raul Frare           
Curadoria
Pollyana Quintella

Fotos
Daniel Katz
07/07 - 18/08 2018

PARCA HEGEMONIA: CORÉIA DO NORTE, TURCOMENISTÃO E ERITRÉIA

Tiradas entre 2007 e 2015, as fotografias de Raul Frare apresentam três países mais conhecidos por nós pelas narrativas do imaginário ocidental do que por seus próprios discursos. As ditaduras asiáticas e africanas têm fascinado o ocidente, entre a condenação de seus abusos de poder e o encantamento pelo seu exotismo. Seguimos oscilando entre criminalizar suas duras realidades e negociar com suas economias, como se habitássemos um mundo à parte. 

Parca Hegemonia reflete aqui essa curiosa contradição presente nas ditaduras de mão pesada pelo mundo afora: o forte endurecimento dos mecanismos de controle se constrói junto a uma crescente fragilidade, uma vez que até os mais sutis exercícios de liberdade parecem pôr em risco a soberania de seus líderes e organizações. Nas fotografias da Coréia do Norte, por exemplo, vemos não só retratos de disciplina e vigilância, mas tentativas de leveza e diversão, como em As crianças de vermelhoe o Parque de diversões. No país, o entretenimento aparece localizado nos parques, no boliche, na ópera, no karaokê, no cinema nacionalista, ou nos Mass Games-- apresentações de dança e ginástica em grandes estádios, celebrando a história do país.

Junto a essa recreação controlada, a arte também ocupa um papel central, servindo como veículo de comunicação, doutrinação e afirmação dos valores do Estado. O país tem hoje um dos maiores estúdios de arte do mundo, o Mansudae, responsável não só pela produção de pinturas e cerâmicas, como também pela elaboração de importantes monumentos públicos em elogio ao poder local, aqui presentes em A estátuae O monumento. Além disso, os coreanos recebem encomendas internacionais de mais de 15 países africanos, como o Senegal, a Namíbia e o Camboja, rompendo sanções e bloqueios para conseguir financiamentos estrangeiros. Em geral, os trabalhos se alinham com a estética do realismo socialista, buscando provocar sentimentos positivos e patrióticos, enaltecer o trabalhador, além de reverenciar constantemente seus líderes em tons heróicos, algo que pode ser aqui percebido em O mural e as florese O discurso. Os cartazes, pintados à mão, também costumam ter mensagens políticas e sociais, muitas vezes com paisagens idílicas e referências ao passado histórico.

O Turcomenistão, ex-república soviética, é também considerado um dos lugares mais repressores do mundo. No entanto, a condenação internacional é comedida, uma vez que o país tem uma das maiores reservas de gás natural do planeta, gerando interesse por parte de governos e empresas ocidentais. Nas fotos, a capital Ashgabat apresenta um clima desértico que se acentua com uma arquitetura que ostenta toneladas de mármore e ouro, aqui exibida pelas fotografias. A escala monumental pretende-se tão divina que não há rastros de qualquer presença humana, a não ser a frequente repetição da imagem de seu líder, o Berdimuhammedow, presente aqui em O Ditadore Mural do ditador. Algo análogo acontece na Coréia do Norte, e pode ser percebido através de A menina, na qual Raul conquista o contraste necessário entre homem e monumento para sinalizar a megalomania do Regime.

Também como na Coréia, obras como pinturas e estátuas de ouro e bronze, com a figura do presidente, estão espalhados por todo o espaço público, reforçando as reverências e personificando o poder. Nos três países, o culto às personalidades é tão vertiginoso que o falecido Kim Jong-il aconselhava que os homens norte-coreanos cortassem os cabelos à sua maneira, e o também falecido Saparmurat Niyazov, do Turcomenistão, chegou a renomear os meses e os dias da semana com o nome de seus familiares. Em O grande líder,Kim Il-sung, o avô do atual presidente norte-coreano aparece confortavelmente sorrindo como se buscasse traduzir o espírito de seu povo: estratégia de autoafirmação e propaganda, nesse caso, não muito diferentes de países ocidentais. 

Já a Eritréia, embora seja um país pequeno, segue sendo responsável pelo maior número de africanos buscando refúgio em território Europeu. Sem eleições ou direitos constitucionais, o país cultiva o trabalho escravo em obras estatais, além de submeter seus cidadãos a treinamentos militares obrigatórios sem serviços básicos. Nesta exposição, a arquitetura italiana mostra-se bastante presente, uma vez que o país europeu fez da Eritréia sua colônia de 1890 até 1947, tornando Asmara, sua capital, uma espécie de “Roma Africana”.

É possível ver o empenho italiano em aplicar o projeto da vanguarda futurista do início do século XX no território africano. Só entre 1936 e 1941, mais de 500 projetos foram desenhados e construídos por italianos em Asmara. Aqui podemos identificar a Farmacia Centrale, a mais antiga da capital, o posto de gasolina Tagliero Fiat, com alta torre central e inspirado nas formas de um avião, e o Cinema Impero, todos com aspectos art decó, alinhados ao gosto Europeu. O desgastes de suas fachadas, o desbotamento e o aspecto de ruína contrapõem o projeto grandioso de outrora com as contradições locais e vai aos poucos relevando a história sangrenta que se oculta por trás dessa arquitetura. O menino em pose soberana em frente à decadência da Farmacia Centraleparece impor resistência ao desabamento de seus direitos em um país com histórico tirânico - não há eleições desde 1993, quando conquistou-se a independência. Em outra foto, uma larga avenida exibe a presença de palmeiras, carros antigos, e poucas propagandas, também nos remetendo a um ambiente nostálgico, como se não tivéssemos saído do século XX. Além disso, cartazes com soldados e bandeiras fazem referência à estética do realismo socialista, como em A propagandae O cartaz.

Entre a distopia, o abuso de poder e o exotismo, experimentamos, com essa primeira exposição de Raul Frare, um olhar que tenta se aproximar da alteridade. Embora saiba que sua narrativa estará sempre fadada ao olhar estrangeiro, Raul constrói um cenário que também nos oferece beleza e diferença, produzindo uma leitura mais complexa do que as notícias fazem crer. É diante disso que nos caberá refletir não sobre coreanos, turcomenos ou eritréios, mas especialmente sobre a relação que estabelecemos com eles e com os problemas que dizem respeito a todos nós.